– Foi há 20 anos atrás, Hammed, lá no Norte. Ainda te lembras?
– Perfeitamente.
Em silêncio diante do colosso monástico, imersos em pesadas recordações, o cónego e o vigário verteram muitas lágrimas.
– Que falta nos faz aqui o professor Armando!
– Que dolorosa tragédia nos foi a sua morte repentina!
– Quem danifica um capitel do século XII ornado de motivos zoomórficos não merece uma morte fácil!
– Quem me dera que ainda respirasse… para o poder suspender pelos testículos nesta torre sineira amparada por arcobotantes e coberta por uma cúpula poligonal neomanuelina, de modo a aprender o que é o respeito pelo património.
– Levar um revólver para um monumento histórico foi o apogeu da demência que lhe consumia o apoucado cérebro desde que nasceu. Tinha tanto talento para o ministério sagrado como para esculpir em relevo um frontal de alabastro.
Nesse momento Castro curvou-se como se estivesse a suportar o peso dos dois contrafortes que ladeavam o pórtico principal.
– A culpa foi minha, irmão Hammed; devia ter moderado o São Mateus.
– A tua indomável perícia no arremesso de apóstolos não podia ser moderada ante ofensas tão sérias. Se desses a outra face seria nela que o Armando descarregaria o revólver.
– Mesmo assim… Era dever profissional não ter usado tanta força e precisão.
– Deus colocou-te uma escolha difícil. É justo que Lhe tenhas retribuído dessa maneira.
Um ruído ecoou cavo e prodigioso: sob o tímpano de dois painéis em relevo representando passagens da vida de S. Jerónimo, a monumental dupla porta girou nos gonzos e da penumbra avançou um velho.
– Cónego Castro, Vigário Hammed, irmãos, obrigado por responderem à minha prece com a vossa presença! Por favor entrai, entrai, que o assunto é muito sério!
– Monsenhor Pedro, quem não vive para servir não serve para viver. E não seria possível recusar uma assembleia no exemplo mais emblemático da arquitectura manuelina, em três naves antecedidas por coro assente em abóboda polinervada rebaixada, sustentada por arcos tudor. – respondeu Castro.
– Todas as naves à mesma altura – completou o outro -, cobertas de abóbada única rebaixada, polinervada com combados, assente em oito pilares octogonais esculpidos com grutescos e em mísulas embebidas na caixa murária.
– Sim, sim… é muito bonito mas entrai por favor. Vinde comigo.
Na igreja de planta longitudinal em cruz latina reuniam-se sete ministros sagrados em torno de dois corpos que jaziam próximo da arca tumular de Luís de Camões.
– Como vos comunicaram alguém profanou o túmulo de Camões levando consigo os ossos do maior poeta português. Pelo caminho matou dois padres que aqui oravam. – disse Pedro sem expressão enquanto dirigia os convidados à assembleia.
Castro não se conteve:
– Pela alma de Boitaca, que acção vergonhosa! Vede como ficaram lascados os motivos neomanuelinos da autoria de Costa Motta!
– Pelas barbas de Afonso Domingues – acrescentou Hammed – como se não fosse suficiente o desastre, a enorme tampa roçou também nas mísulas embebidas na caixa murária de um dos pilares!
Monsenhor Pedro já estava reunido com os outros e procurava uma oportunidade para os apresentar.
– Irmãos Hammed e Castro, tenham a bondade…
– Perdoai, monsenhor e restantes irmãos, mas não vale a pena perder tempo com apresentações. Troquemos o protocolo pela razão de nos terem aqui chamado, ou seja, pela investigação urgente desta violação do património. Foi há poucas horas, porque os corpos ainda estão quentes. Talvez o criminoso ainda esteja neste magnífico complexo de planta composta com volumes articulados de massa horizontal.
– Pode ter trepado por um destes pilares octogonais, aproveitando a decoração de grutescos e nichos para subir até ao coro-alto, escondendo-se depois no cadeiral de talha maneirista atribuído a Diogo de Sarça!
– Ou então corrido para o transepto e estar abrigado num dos túmulos dos arcossólios. Talvez no de D. Sebastião, que todos sabem estar vazio!
– Não é fácil abrir um desses túmulos e já vimos que o bandido tem tanta habilidade para lidar com túmulos como um rinoceronte para fabricar relógios de carrilhão. Mas pode ter seguido para a sacristia com cobertura em abóbada tornejante.
Já impaciente, monsenhor Pedro interrompeu:
– Irmãos, não queremos perseguir ninguém. A nossa profissão cristã obriga a perdoar o crime.
Castro e Hammed fitaram confusos o grupo de clérigos.
– Então para que nos querem aqui? E para perdoar um crime são necessários um monsenhor, um arcebispo ad personam, um abade territorial, um prefeito apostólico, um diácono, um prelado pessoal e outros dois presbíteros?
Alguns sorrisos cúmplices ecoaram na nave, deixando de se ouvir quando a pesada porta da entrada Sul se fechou atroando no espaço como um tiro de canhão.
– Não, não – avançou o arcebispo – estamos aqui para, diante da morte, meditar sobre os caminhos do Senhor. Da morte, não a destes dois desgraçados que aqui jazem, mas a de António, meu irmão de sangue, primo do abade, colega do prefeito, professor do diácono, companheiro de peregrinação do prelado e amigo íntimo dos dois presbíteros, assassinado cruelmente há 20 anos por dois homicidas que despacharemos hoje ao Reino dos Céus para serem julgados!
Dizendo isto o arcebispo tirou debaixo do mantel um par de castiçais de bronze do século XIX e correu sedento de vingança, seguido por toda a assembleia, na direcção de Hammed e Castro. Estes, sem hipótese de abordar teologicamente as contradições do discurso, fugiram e separaram-se, o primeiro para o claustro seguido pelo monsenhor, o abade, o prelado e o prefeito, e o segundo para a capela-mor perseguido pelo arcebispo, o diácono e os presbíteros.
Apesar da inferioridade numérica, Hammed e Castro tinham a vantagem de conhecer em profundidade o maneirismo e o estilo gótico flamejante. Depois de algumas fintas no transepto, Castro enfiou-se entre a parede e a arca tumular de D. Manuel e empurrou-a com todo o corpo, fazendo-a desabar, com os seus elefantes de mármore, sobre os dois presbíteros. De seguida trepou à parede testeira, adorou o grande sacrário de prata, trabalho do ourives João de Sousa (1674-1678), oferecido pelo rei D. Afonso VI em acção de graças pela vitória alcançada na batalha de Montes Claros, e fê-lo rolar sobre o diácono, que teve morte imediata.
Jorrando lágrimas pelos atentados patrimoniais que o obrigavam a executar, subiu a escadaria até ao coro-alto, estimando a balaustrada de pedra e o cadeiral de talha maneirista decorado com temática sacra, e pontapeou os molares do arcebispo que já quase o alcançava, oferecendo-lhe uma morte violenta pelos degraus abaixo.
Também no claustro o tédio não era predominante. Hammed evitou o golpe do abade esgueirando-se por uma arcada profusamente decorada e a manobra foi tão destramente executada que o abade, confuso, embateu com a testa num mainel e cambaleou. Apercebendo-se da vantagem, Hammed voltou atrás e esmagou-lhe o crânio no remate em platibanda decorado com medalhões e bustos maneiristas.
O prelado perseguiu Hammed até à Sala do Capítulo, mas quando ia a entrar o vigário empurrou vigorosamente a porta executada por Rodrigo de Pontezilha e esmagou-lhe duas vértebras cervicais.
Foi o prefeito que retomou a caçada, correndo atrás de Hammed pela escadaria de acesso ao coro-alto. Lá em cima fechou a porta atrás de si, encurralando o vigário no pequeno espaço. Cada um arrancou então uma peça em talha do cadeiral monástico, uma das obras mais belas deixada pela carpintaria artística do Renascimento, desenhada por Diogo de Torralva e executada por Diogo de Sarça.
O combate foi violento e demorado, mas com uma tacada digna de um home run Hammed conseguiu fazer desabar da balaustrada não só o prefeito como todo o Cristo Crucificado de Philippe de Vries, que se desfez com enorme estrondo no piso inferior. Ao estrondo seguiu-se um grito aterrorizado proveniente da rosácea:
– Hammed! Cuidado!
Atrás do vigário, que se debruçava sobre a balaustrada e deixava cair sofridas lágrimas sobre os estilhaços do Salvador, o monsenhor empunhava uma caçadeira de canos serrados e preparava-se para orar.
– Deus misericordioso, deixa-me experimentar o Teu chumbo. Dai-me pontaria para acertar nestes dois irmãos que mataram o professor António, um arcebispo, um prefeito, um diácono, um prelado, um abade e dois presbíteros. Ámen.
– Esperai monsenhor Pedro! – implorou Hammed.
– Sim, monsenhor, esperai! – adicionou Castro atrás dele.
– É inútil, irmãos. Nem o Redentor me faria desviar do caminho e poupar as vossas criminosas vidas, e não, não vos vou satisfazer a curiosidade sobre o túmulo de Camões e os dois padres mortos.
– Não é isso! – disse Hammed.
– Não, não é isso! – gritou Castro.
– Então o que querem?
– Se disparares daí com uma arma desse género não poderás evitar atingir o retábulo com pinturas onde se representam cenas da Paixão de Cristo e a Adoração dos Magos, da autoria de Lourenço de Salzedo, executado entre 1572 e 1574!
– E com azar um ricochete pode atingir um vitral de Abel Manta ou de Rebocho, arruinando a atmosfera de grande encantamento acentuada pela serena luminosidade filtrada pela arte gótica!
Monsenhor não ponderou um décimo de segundo sobre as advertências do vigário e do cónego, preferindo premir um dos gatilhos, mas a arma não disparou. Uma estranha força invisível travara o cão e impedira o disparo que seria fatal para Hammed e o património nacional. Pedro olhou para trás e gelou de medo ao ver o espectro de Camões a segurar na arma. O seu velho e cansado coração não suportou o susto e terminou ali mesmo a sua existência, aos pés do príncipe dos poetas.
Hammed e Castro não podiam ter ficado mais confusos.
– Sois Luís de Camões, o grande poeta, ó espectro?
– Sim.
– O que pensais do mais famoso estilo arquitectónico do vosso tempo, esta mescla de gótico final com elementos renascentistas, influenciado pelos estilos contemporâneos plateresco, isabelino, e elementos italianos, flamengos e mudéjares? – perguntou Hammed.
O espectro ficou imóvel e silente durante 10 segundos. Castro emendou:
– Porque nos salvastes, espectro? Que aconteceu ao vosso túmulo e aos dois padres que jazem junto dele?
Camões pôs a mão no peito e cantou a história.
– Esse monsenhor torpe e putrefeito
Que ao nascer revelou vida arrotando
E mamou de um esfíncter, não de um peito,
Como ar as próprias bufas respirando,
Qual nojento escarro, ao clero eleito
Colado, fedendo, fossilizando…
Tal monsenhor, dizia eu, aqui veio
Esvaziar meu túmulo de ossos cheio.
– À cena sete pulhas se assomaram
Servos da mesma Igreja apodrecida
E arrastando dois corpos festejaram
Por vos terem encurtado já a vida:
“- Repõe os ossos, Pedro” – eles bradaram
“Que já tiveram pena merecida”.
“- Seus merdas”, Pedro disse, “esses são
Os assistentes de conservação!”
– A ambos vos chamaram prontamente
Usando como desculpa traiçoeira
Os crimes engulhosos desta gente
Que faz parecer sadia uma lixeira,
Brutos pensando pelo cu somente,
Comendo estupidez, cagando asneira.
Maldita, chula, abjecta ralé,
Arrotos, cocó, xixi e chulé!
O último verso do príncipe dos poetas, declamado energicamente em heróico registo, ecoou no espaço até se desvanecer num glorioso silêncio.
– E o que achais do estilo manuelino? – voltou a perguntar Hammed.
– Ide à merda. – disse o espectro, e desapareceu.
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