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A Comunhão II

– Foi há 20 anos atrás, Hammed, lá no Norte. Ainda te lembras?

– Perfeitamente.

Em silêncio diante do colosso monástico, imersos em pesadas recordações, o cónego e o vigário verteram muitas lágrimas.

– Que falta nos faz aqui o professor Armando!

– Que dolorosa tragédia nos foi a sua morte repentina!

– Quem danifica um capitel do século XII ornado de motivos zoomórficos não merece uma morte fácil!

– Quem me dera que ainda respirasse… para o poder suspender pelos testículos nesta torre sineira amparada por arcobotantes e coberta por uma cúpula poligonal neomanuelina, de modo a aprender o que é o respeito pelo património.

– Levar um revólver para um monumento histórico foi o apogeu da demência que lhe consumia o apoucado cérebro desde que nasceu. Tinha tanto talento para o ministério sagrado como para esculpir em relevo um frontal de alabastro.

Nesse momento Castro curvou-se como se estivesse a suportar o peso dos dois contrafortes que ladeavam o pórtico principal.

– A culpa foi minha, irmão Hammed; devia ter moderado o São Mateus.

– A tua indomável perícia no arremesso de apóstolos não podia ser moderada ante ofensas tão sérias. Se desses a outra face seria nela que o Armando descarregaria o revólver.

– Mesmo assim… Era dever profissional não ter usado tanta força e precisão.

– Deus colocou-te uma escolha difícil. É justo que Lhe tenhas retribuído dessa maneira.

Um ruído ecoou cavo e prodigioso: sob o tímpano de dois painéis em relevo representando passagens da vida de S. Jerónimo, a monumental dupla porta girou nos gonzos e da penumbra avançou um velho.

– Cónego Castro, Vigário Hammed, irmãos, obrigado por responderem à minha prece com a vossa presença! Por favor entrai, entrai, que o assunto é muito sério!

– Monsenhor Pedro, quem não vive para servir não serve para viver. E não seria possível recusar uma assembleia no exemplo mais emblemático da arquitectura manuelina, em três naves antecedidas por coro assente em abóboda polinervada rebaixada, sustentada por arcos tudor. – respondeu Castro.

– Todas as naves à mesma altura – completou o outro -, cobertas de abóbada única rebaixada, polinervada com combados, assente em oito pilares octogonais esculpidos com grutescos e em mísulas embebidas na caixa murária.

– Sim, sim… é muito bonito mas entrai por favor. Vinde comigo.

Na igreja de planta longitudinal em cruz latina reuniam-se sete ministros sagrados em torno de dois corpos que jaziam próximo da arca tumular de Luís de Camões.

– Como vos comunicaram alguém profanou o túmulo de Camões levando consigo os ossos do maior poeta português. Pelo caminho matou dois padres que aqui oravam. – disse Pedro sem expressão enquanto dirigia os convidados à assembleia.

Castro não se conteve:

– Pela alma de Boitaca, que acção vergonhosa! Vede como ficaram lascados os motivos neomanuelinos da autoria de Costa Motta!

– Pelas barbas de Afonso Domingues – acrescentou Hammed – como se não fosse suficiente o desastre, a enorme tampa roçou também nas mísulas embebidas na caixa murária de um dos pilares!

Monsenhor Pedro já estava reunido com os outros e procurava uma oportunidade para os apresentar.

– Irmãos Hammed e Castro, tenham a bondade…

– Perdoai, monsenhor e restantes irmãos, mas não vale a pena perder tempo com apresentações. Troquemos o protocolo pela razão de nos terem aqui chamado, ou seja, pela investigação urgente desta violação do património. Foi há poucas horas, porque os corpos ainda estão quentes. Talvez o criminoso ainda esteja neste magnífico complexo de planta composta com volumes articulados de massa horizontal.

– Pode ter trepado por um destes pilares octogonais, aproveitando a decoração de grutescos e nichos para subir até ao coro-alto, escondendo-se depois no cadeiral de talha maneirista atribuído a Diogo de Sarça!

– Ou então corrido para o transepto e estar abrigado num dos túmulos dos arcossólios. Talvez no de D. Sebastião, que todos sabem estar vazio!

– Não é fácil abrir um desses túmulos e já vimos que o bandido tem tanta habilidade para lidar com túmulos como um rinoceronte para fabricar relógios de carrilhão. Mas pode ter seguido para a sacristia com cobertura em abóbada tornejante.

Já impaciente, monsenhor Pedro interrompeu:

– Irmãos, não queremos perseguir ninguém. A nossa profissão cristã obriga a perdoar o crime.

Castro e Hammed fitaram confusos o grupo de clérigos.

– Então para que nos querem aqui? E para perdoar um crime são necessários um monsenhor, um arcebispo ad personam, um abade territorial, um prefeito apostólico, um diácono, um prelado pessoal e outros dois presbíteros?

Alguns sorrisos cúmplices ecoaram na nave, deixando de se ouvir quando a pesada porta da entrada Sul se fechou atroando no espaço como um tiro de canhão.

– Não, não – avançou o arcebispo – estamos aqui para, diante da morte, meditar sobre os caminhos do Senhor. Da morte, não a destes dois desgraçados que aqui jazem, mas a de António, meu irmão de sangue, primo do abade, colega do prefeito, professor do diácono, companheiro de peregrinação do prelado e amigo íntimo dos dois presbíteros, assassinado cruelmente há 20 anos por dois homicidas que despacharemos hoje ao Reino dos Céus para serem julgados!

Dizendo isto o arcebispo tirou debaixo do mantel um par de castiçais de bronze do século XIX e correu sedento de vingança, seguido por toda a assembleia, na direcção de Hammed e Castro. Estes, sem hipótese de abordar teologicamente as contradições do discurso, fugiram e separaram-se, o primeiro para o claustro seguido pelo monsenhor, o abade, o prelado e o prefeito, e o segundo para a capela-mor perseguido pelo arcebispo, o diácono e os presbíteros.

Apesar da inferioridade numérica, Hammed e Castro tinham a vantagem de conhecer em profundidade o maneirismo e o estilo gótico flamejante. Depois de algumas fintas no transepto, Castro enfiou-se entre a parede e a arca tumular de D. Manuel e empurrou-a com todo o corpo, fazendo-a desabar, com os seus elefantes de mármore, sobre os dois presbíteros. De seguida trepou à parede testeira, adorou o grande sacrário de prata, trabalho do ourives João de Sousa (1674-1678), oferecido pelo rei D. Afonso VI em acção de graças pela vitória alcançada na batalha de Montes Claros, e fê-lo rolar sobre o diácono, que teve morte imediata.

Jorrando lágrimas pelos atentados patrimoniais que o obrigavam a executar, subiu a escadaria até ao coro-alto, estimando a balaustrada de pedra e o cadeiral de talha maneirista decorado com temática sacra, e pontapeou os molares do arcebispo que já quase o alcançava, oferecendo-lhe uma morte violenta pelos degraus abaixo.

Também no claustro o tédio não era predominante. Hammed evitou o golpe do abade esgueirando-se por uma arcada profusamente decorada e a manobra foi tão destramente executada que o abade, confuso, embateu com a testa num mainel e cambaleou. Apercebendo-se da vantagem, Hammed voltou atrás e esmagou-lhe o crânio no remate em platibanda decorado com medalhões e bustos maneiristas.

O prelado perseguiu Hammed até à Sala do Capítulo, mas quando ia a entrar o vigário empurrou vigorosamente a porta executada por Rodrigo de Pontezilha e esmagou-lhe duas vértebras cervicais.

Foi o prefeito que retomou a caçada, correndo atrás de Hammed pela escadaria de acesso ao coro-alto. Lá em cima fechou a porta atrás de si, encurralando o vigário no pequeno espaço. Cada um arrancou então uma peça em talha do cadeiral monástico, uma das obras mais belas deixada pela carpintaria artística do Renascimento, desenhada por Diogo de Torralva e executada por Diogo de Sarça.

O combate foi violento e demorado, mas com uma tacada digna de um home run Hammed conseguiu fazer desabar da balaustrada não só o prefeito como todo o Cristo Crucificado de Philippe de Vries, que se desfez com enorme estrondo no piso inferior. Ao estrondo seguiu-se um grito aterrorizado proveniente da rosácea:

– Hammed! Cuidado!

Atrás do vigário, que se debruçava sobre a balaustrada e deixava cair sofridas lágrimas sobre os estilhaços do Salvador, o monsenhor empunhava uma caçadeira de canos serrados e preparava-se para orar.

– Deus misericordioso, deixa-me experimentar o Teu chumbo. Dai-me pontaria para acertar nestes dois irmãos que mataram o professor António, um arcebispo, um prefeito, um diácono, um prelado, um abade e dois presbíteros. Ámen.

– Esperai monsenhor Pedro! – implorou Hammed.

– Sim, monsenhor, esperai! – adicionou Castro atrás dele.

– É inútil, irmãos. Nem o Redentor me faria desviar do caminho e poupar as vossas criminosas vidas, e não, não vos vou satisfazer a curiosidade sobre o túmulo de Camões e os dois padres mortos.

– Não é isso! – disse Hammed.

– Não, não é isso! – gritou Castro.

– Então o que querem?

– Se disparares daí com uma arma desse género não poderás evitar atingir o retábulo com pinturas onde se representam cenas da Paixão de Cristo e a Adoração dos Magos, da autoria de Lourenço de Salzedo, executado entre 1572 e 1574!

– E com azar um ricochete pode atingir um vitral de Abel Manta ou de Rebocho, arruinando a atmosfera de grande encantamento acentuada pela serena luminosidade filtrada pela arte gótica!

Monsenhor não ponderou um décimo de segundo sobre as advertências do vigário e do cónego, preferindo premir um dos gatilhos, mas a arma não disparou. Uma estranha força invisível travara o cão e impedira o disparo que seria fatal para Hammed e o património nacional. Pedro olhou para trás e gelou de medo ao ver o espectro de Camões a segurar na arma. O seu velho e cansado coração não suportou o susto e terminou ali mesmo a sua existência, aos pés do príncipe dos poetas.

Hammed e Castro não podiam ter ficado mais confusos.

– Sois Luís de Camões, o grande poeta, ó espectro?

– Sim.

– O que pensais do mais famoso estilo arquitectónico do vosso tempo, esta mescla de gótico final com elementos renascentistas, influenciado pelos estilos contemporâneos plateresco, isabelino, e elementos italianos, flamengos e mudéjares? – perguntou Hammed.

O espectro ficou imóvel e silente durante 10 segundos. Castro emendou:

– Porque nos salvastes, espectro? Que aconteceu ao vosso túmulo e aos dois padres que jazem junto dele?

Camões pôs a mão no peito e cantou a história.

– Esse monsenhor torpe e putrefeito
Que ao nascer revelou vida arrotando
E mamou de um esfíncter, não de um peito,
Como ar as próprias bufas respirando,
Qual nojento escarro, ao clero eleito
Colado, fedendo, fossilizando…
Tal monsenhor, dizia eu, aqui veio
Esvaziar meu túmulo de ossos cheio.

– À cena sete pulhas se assomaram
Servos da mesma Igreja apodrecida
E arrastando dois corpos festejaram
Por vos terem encurtado já a vida:
“- Repõe os ossos, Pedro” – eles bradaram
“Que já tiveram pena merecida”.
“- Seus merdas”, Pedro disse, “esses são
Os assistentes de conservação!”

– A ambos vos chamaram prontamente
Usando como desculpa traiçoeira
Os crimes engulhosos desta gente
Que faz parecer sadia uma lixeira,
Brutos pensando pelo cu somente,
Comendo estupidez, cagando asneira.
Maldita, chula, abjecta ralé,
Arrotos, cocó, xixi e chulé!

O último verso do príncipe dos poetas, declamado energicamente em heróico registo, ecoou no espaço até se desvanecer num glorioso silêncio.

– E o que achais do estilo manuelino? – voltou a perguntar Hammed.

– Ide à merda. – disse o espectro, e desapareceu.

Hiato

Vastíssimo público, está este mundo cheio de espíritos quebrados e assombrosos hiatos. E este blog é, infelizmente, deste mundo e sofre dos mesmos acidentes e faltas. Lamento portanto dizer que terá um intervalo que não sei precisar. Pode ser pequeno ou infinito, feito dessa eternidade que é no fundo o caixote-do-lixo de tudo.

A quem está aí desse lado um bem haja. Que prossiga, no modo que melhor aprouver, a busca da verdade, a bela verdade, método superior, talvez o único, de cumprir o real sentido da vida que é dizer mal das coisas. Assim que achem uma verdade saberão não só quanta tragédia encerra como quão ridículo é tudo em volta, e por isso vão chorar e rir ao mesmo tempo. Mais tarde cairão no lixo.

Chorai, pois, e ride em simultâneo muitas vezes, nunca vos esquecendo que sois ridículos.

 

 

H   I   A   T   O

Apologia de uma velha

– Pretendo fazer a apologia de uma velha.

– Uma velha que vive?

– Não sobre a terra.

– Alguém que mudou esta cidade, este país ou este mundo?

– Nada mudou.

– Alguém que deixou uma obra capaz de mudar esta cidade, este país ou este mundo?

– Deixou somente lembranças escritas em papéis desorganizados, cheias de erros ortográficos.

– Alguém, então, cujos extraordinários ensinamentos poderão fundar grandes edifícios, sabedoria passada oralmente como a de Sócrates ou Jesus de Nazaré?

– Nada desse género foi pronunciado em 86 anos.

– Não entendo. Porque farás a apologia de alguém que nada mudou, nada influenciou e não deixou obra de valor?

– Porque não foi a mudança, a influência ou a obra feita que brilhou diante de mim com uma luz que não voltarei a ver.

– O que te deixou, nesse caso, tamanha impressão?

– Alguém que foi, em si mesma, a maior obra de todas.

*

As minhas saudades são de um universo inteiro, já te disse? Tenho o espólio dela dentro de uma caixa: numa caixa e num caixão cabe o que sobrou de um universo ido. Mas o que tenho a agradecer ao que está lá dentro não se pode medir. Tentarei, para te descrever esta pessoa, contornar o abismo que as lágrimas querem ocupar.

Digo-te que era simples, humilde. Não teve de se esforçar para escapar à mesquinhez típica de uma sociedade abundante em mentes pequenas. Habituou-se a ser feliz com quanto tinha – e ela, que materialmente não tinha quase nada, emocionalmente parecia ter tudo e todos. É incrível como tantos gostavam dela, ricos e pobres, velhos e novos, simpáticos e antipáticos.

Esta pobre maravilha, que nunca viajou para longe, tinha um coração que abraçava todas as partes da Terra. Sentia empatia por toda a gente, todos eram o seu próximo. Não pôde ir para oriente, como uma Madre Teresa, distribuir calor e esperança pelos desgraçados, mas nasceu com força e vontade para cuidar de dez orientes.

O único mundo que lhe foi dado foi a família e um pouco de cidade em volta. Como muitas mulheres da sua época, pela família não pôde prosseguir estudos, ter uma profissão ou viajar. No entanto a alma, a sua essência, aquilo que continha de superior e não sei definir, era impossível de limitar. Ela foi, numas pequenas águas-furtadas, o que seria num palácio porque uma estrela verdadeira não brilha menos por estar numa galáxia mais pequena.

A família, sim, foi a verdadeira afortunada, e depois todos os outros que puderam conviver com ela. É certo que, por ironia humana, os que mais perto estão são por vezes os que menos querem ver, mas não deixam mesmo assim de ser tão afortunados como estúpidos.

Com ela aprendi mais estoicismo do que com Séneca e Marco Aurélio porque este ser era o estoicismo em acção. Os grandes estóicos recorreram à filosofia para se prepararem para a morte – enquanto ela nasceu já preparada, sem necessidade de filosofia. Outros determinaram que o objectivo máximo da filosofia era a felicidade, e também para isso ela não precisou de escrever diálogos; foi feliz nas mais adversas condições como a flor que, no inóspito rochedo, cumpre a sua natureza e abre ao Sol todos os dias.

Às mortes mais dilacerantes, e ao seu próprio tormento antes de morrer, respondeu com momentos heróicos de amor pelos outros que os meus olhos nunca mais conhecerão. A cândida brandura que sempre possuiu nunca definhou. Até ao fim atraiu gente em volta, todo o tipo de gente, porque, como a cor e a música, falava directamente ao coração. Diziam que o azul dos seus olhos era o do céu sem terem a noção de quanto estavam certos.

*

Não precisava pois de elaborar qualquer obra porque já era, em si mesma, uma jóia primorosamente acabada. Pareceu-me, nas breves quatro décadas em que a conheci, um tesouro demasiado precioso para estar entre nós, acidentes humanos. Nunca conheci ninguém como ela e muitas vezes tentei perceber porquê, tentando focar com a razão aquilo que os meus sentidos viam sem esforço.

Depois de fitarmos muito o oceano deixamos de ver a água, a ondulação, a espuma, os brilhos e as cores; é só nessa altura que vemos realmente o oceano, não porque o abarquemos na sua totalidade, que seria impossível, mas porque reparamos no que dá unidade a todas as partes que antes víamos: uma força antiga e encantadora que largamente nos supera.

Talvez os gregos antigos, que atribuíam deuses ao que falo, me percebessem melhor: guardo no coração o privilégio de ter conhecido a Bondade. Bem sei que não sou ninguém para avistar tamanha virtude, mas ditou a sorte humana que mesmo olhos pequenos pudessem apreciar as estrelas.

Sim, a unidade era essa, foi isso que vi depois de muito observar: todos os aspectos desta pessoa transportavam a misteriosa, antiga e imortal Bondade. É a essa velha, essa velha e rara virtude, que eu dedico a minha apologia.

Graças à pessoa que a transportou e me deu o privilégio de a conhecer, a Bondade para mim passou a ter um rosto, um rosto que recordarei enquanto viver. Vê-lo-ei sempre que uma mãe se sacrificar por um filho, uma lágrima for derramada por uma catástrofe distante ou um moribundo cuidar mais do próximo do que da vida que lhe resta.

O Corvo

Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos, curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais
«Uma visita», eu me disse, «está batendo a meus umbrais.
É só isso e nada mais.»

Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro,
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P’ra esquecer (em vão) a amada, hoje entre hostes celestiais —
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,
«É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isso e nada mais».

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
«Senhor», eu disse, «ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi…» E abri largos, franquendo-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais —
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse aos meus ais.
Isto só e nada mais.

Para dentro estão volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
«Por certo», disse eu, «aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.»
Meu coração se distraía pesquisando estes sinais.
«É o vento, e nada mais.»

Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
Mas com ar solene e lento pousou sobre meus umbrais,
Num alvo busto de Atena que há por sobre meus umbrais.
Foi, pousou, e nada mais.

E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
«Tens o aspecto tosquiado», disse eu, «mas de nobre e ousado,
Ó velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.»
Disse-me o corvo, «Nunca mais».

Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome «Nunca mais».

Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento
Perdido, murmurei lento, «Amigo, sonhos — mortais
Todos — todos lá se foram. Amanhã também te vais».
Disse o corvo, «Nunca mais».

A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
«Por certo», disse eu, «são estas vozes usuais.
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entono da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp’rança de seu canto cheio de ais
Era este «Nunca mais».

Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu’ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele «Nunca mais».

Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!

Fez-me então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dessem, cujos leves passos soam musicais.
«Maldito!», a mim disse, «deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz esses teus ais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».

«Profeta», disse eu, «profeta — ou demónio ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».

«Que esse grito nos aparte, ave ou diabo!, eu disse. «Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!»
Disse o corvo, «Nunca mais».

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demónio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais,
E a minh’alma dessa sombra, que no chão há mais e mais,
Libertar-se-á… nunca mais!

“The Raven”, Edgar Allan Poe
(Tradução de Fernando Pessoa)

Malaca Casteleiro, “pai do acordo”,  para além de ser responsável pela versão “portuguesa” do surrealista dicionário brasileiro Houaiss e coordenador do sinistro dicionário da Academia das Ciências de Lisboa (o tal em que “eau-de-toilete”, só com um ‘t’, é considerada uma palavra portuguesa, tal como “stafe”, “icebergue”, “bué”, “cretcheu” e “guterrismo”…), também é… indiano.

Não tenho nada contra os indianos, nem contra os estrangeiros em geral, e participo dessa mentalidade de intercâmbio positivo do mundo civilizado. Mas as nações existem, como o respectivo património cultural, e todos gostamos que seja assim. Creio que ninguém ignora que existem fronteiras, e que ninguém quer que deixem de existir pelo menos a nível da sua cultura.

Um estrangeiro não pode ocupar qualquer função, em qualquer país. Não se admite um presidente estrangeiro, por exemplo, por razões óbvias. E por razões ainda mais óbvias não se devia permitir que decisões que afectam a língua de um país, património de muitas gerações, estivessem nas mãos de um estrangeiro. Muito menos um estrangeiro muito criticado pela comunidade científica e cuja obra revela desprezo pela língua que tem dificuldade em falar.

Alguém devia explicar que a Língua Portuguesa não é um argumento de Bollywood e que não suporta que se misture tudo lá dentro como acontece nos filmes indianos. Misturar tudo não é o que os portugueses querem e os portugueses é que são donos da sua língua – não os brasileiros e os indianos. Os portugueses é que a usam diariamente para trabalhar, comunicar, fabricar arte – o que é que um estrangeiro percebe disto? Melhor questão ainda: porque é que um estrangeiro terá de perceber alguma coisa disto? E por que apagão mental é que o seu voto terá maior peso na alteração da ortografia do que os de todos os portugueses?

Como é que a Índia, ou o Brasil, reagiriam se os seus políticos confiassem num português para decidir sobre a sua ortografia, contra os seus especialistas e contra o seu povo? É uma pergunta absurda – ninguém de bom senso pondera essa possibilidade. O único país em que algo como isto podia acontecer chama-se Portugal. E se é verdade que aconteceu na maldita “era Sócrates”, uma das mais desgraçadas e anti-patriotas da História, também é verdade que Cavaco Silva deixou que o Atentado entrasse em vigor e que os outros partidos não se opuseram. A culpa desta vez não é sobretudo do PS, é da classe política em geral, uma classe desprovida de vértebras, sem memória, sem amor pela cultura, sempre provinciana, sempre fascinada pelo gigante estrangeiro e encolhida diante dele. Uma classe que não merece ter nascido num país como Portugal… e que Portugal não merece que tivesse nascido.

Há sinais recentes, porém, muito positivos. Talvez tardios, talvez não, mas muito positivamente a alertar para a imbecilidade imposta deste acordo que não é acordo nenhum posto em vigor não só antes de todos os países da lusofonia o ratificarem como à margem de qualquer referendo e contra a maioria dos especialistas. Vasco Graça Moura, um dos poucos que sempre o denunciou publicamente, e na Assembleia, e tem feito quanto lhe é possível pela Língua Portuguesa, ordenou que o AO1990 não se aplicasse no Centro Cultural de Belém. É certo que não pode impedir que ele se aplique nos media, nas escolas, em todo o país, mas colocou o acordo no último sítio que os seus defensores desejariam: no debate público.

http://aeiou.expresso.pt/vasco-graca-moura-acaba-com-acordo-ortografico-no-ccb=f702768

Obrigado V. Graça Moura. Mas também os deputados do PSD Açores levantaram recentemente perguntas ao Governo sobre a utilidade deste AO, defendendo que entrada em vigor do foi apressada e pedindo mesmo a suspensão da coisa. Uma maneira politicamente correcta de mostrar que os Açores não querem engolir o estrume que nos estão a enfiar, a todos, pela boca abaixo.

http://ilcao.cedilha.net/?tag=mota-amaral

Somam-se também notícias e artigos nos blogs de gente comum, invisível, como eu, que lutam para que os filhos não aprendam a escrever nesse estranho e burlesco “acordês” (língua que no futuro será descrita como “variante do brasileiro”). Que lutam, se quisermos, pela liberdade de preservar o seu património contra a imposição estúpida, alheia à cultura e ao bom senso, de uma ortografia estrangeira. E iniciativas como esta: http://ilcao.cedilha.net/ .

A felicidade está para a vida como a vida para a morte. Estamos mortos uma eternidade mas, num brevíssimo período, como se despertássemos de um coma, nascemos, a vida abre-se como uma flor ao Sol e promete coisas magníficas. Rapidamente gostamos do mundo.

E depois vamos progressivamente percebendo que tudo é breve e retornará inevitavelmente ao seu estado natural, que é a morte eterna. Vemos que fomos enganados e não estamos preparados para isso porque o instinto da vida, esse misterioso fogo, não é coisa que se apague facilmente. Olimpicamente resistimos.

Condenados à ilusão trocamos os passos e caímos até ao entendimento de que nem passos havia. O que era antes estrada e arbítrio é agora um rio que nos carrega. Vamos embatendo nas pedras sempre com a consciência aguda de que só pela mentira nos podemos, não salvar, mas aguentar a viagem. É nesse pequeno e ridículo percurso que os deuses nascem, as morais ensinam e a arte floresce.

E não há nenhum “mas” que nos ajude. É somente assim. São mais felizes os que se iludem, aqueles cuja vontade fundamental de viver fala mais alto do que os outros argumentos. Fala, porém, pouco tempo, e nada do que diz ecoa no universo, nenhuma palavra nega o absurdo.

A Simplificação

É o argumento mais atractivo oferecido pelo “acordo” para os “modernos” dos nossos dias: a simplificação. Ficam boquiabertos de pasmo, os “modernos”, perante a coragem de eliminar letras que não pronunciam. “Que coragem!”, meditam admirados, “Que simplificação!”.

Alguns notam que nem tudo é coerente, outros notam que muita coisa é incoerente, que nem todas as consoantes mudas foram removidas, como o ‘h’ no início das palavras, que a remoção não é respeitada pelo Brasil em casos como “recepção” e “concepção”, que o critério da “norma culta” é obscuro, que é mais fácil resolver uma equação diferencial do que saber onde aplicar um hífen, mas o objectivo da simplificação é demasiado atractivo para que se deixem levar pela correnteza do esgoto, e resistem. “Tudo pela simplificação!”, brada o seu espírito minimalista, “nem tudo é perfeito, é só o primeiro passo!”.

O corte com o passado é também visto, só por si, como uma coisa positiva – um sinal de progresso. Não sabem os minimalistas para onde progridem nem lhes importa tão insignificante detalhe, mas sentem que avançam porque algo muda, porque não há estagnação. Podem dizer-lhes que também o corpo muda com a morte, entrando em decomposição, que se mantêm presos na utopia como um fóssil na rocha. “Ordem e progresso!”, gritam, “ordem e progresso!”.

Ora bem, como rebater tal ânimo? Podem rebater-se argumentos – mas ânimo, ânimo a sério, é difícil. Alguém alguma vez demoveu um estilita de viver sobre uma coluna ou um crente da IURD de dar a dízima? Não, a solução não é rebater: é achar um caminho diferente para eles, um que não se cruze com a Língua Portuguesa e portanto não a afecte.

Podem ter muito mais simplificação usando a língua mais objectiva de todas, feita não pelo povo mas por sábios, como querem: o Esperanto. O Esperanto, simplificadores simplórios, é a vossa verdadeira língua. Passem a falar e a escrever em Esperanto e deixem de tentar “aperfeiçoar” um património que ignoram – deixem a Língua Portuguesa e a sua História de tantos séculos, já tão desgraçada pela revisão de 1911, e a infinita riqueza das suas imperfeições, em paz para que continuem a desfrutar dela os muitos e verdadeiros apreciadores de hoje e do futuro.

Adoptem o Esperanto, criminosos! Senão vejam o que vem a seguir vindo de vós e do vosso insaciável apetite por utopias. Talvez não cheguem ao cúmulo de alisar as paredes do Mosteiro dos Jerónimos para o simplificar (quem sabe!), mas porque o acordo de 1990 não atinge o vosso objectivo chegarão a isto:

– Removerão o “h” no início das palavras: “elicóptero”, “úmido”, “erdar”, “abilitado”, “iato”, “aver”.

– Mudarão “x” por “ch” ou “s” quando têm o mesmo som. Para quê duas formas de escrever o mesmo som? O acordo já dá uma resposta a isso ao determinar a ortografia pela pronúncia. É muito mais simples ter apenas uma forma. Passarão a escrever “chilofone”, “estraordinário”, “estenção”,”echelente”, “esceção”, “chisto”, “chadrez” e “chelim”.

– Mudarão “s” por “z” quando têm o mesmo som: “êstaze”, “pizar”, “ipófize”, “izocromático”, “izento”.

– Acabam com as duplas grafias. Na sequência dos critérios do acordo, para não se chocar a sociedade brasileira, líder do mundo lusófono, optar-se-á sempre pela grafia (mais moderna) desse país: “eletrônico”, “armônico”, “fato”, “intato”, “seção”, “anistia”, “sutil”.

– Mudarão “ss”, ou “s”, para “ç” quando tem este som: “preção”, “fição”, “açolar”, “oço”, “açado”, “çotaina”.

– Mudarão o “o” para “u” quando tem este som e não altera a pronúncia da palavra: “çulução”, “mução”, “pução”, “lutaria”, “pucilga”.

– Removerão a letra “q” do dicionário (25 é mais simples que 26), substituindo-a sempre pelo “k” nas palavras: “kuarto”, “kente”, “kuaze”, “parke”, “pakete”, “keke”, “purke”.

– Para maior simplicidade ainda o “c” será substituído também pelo “k” quando tem este som: “konta”, “kão”, “tako”, “kato”, “makako”.

– Mudarão o “e” pelo “i” quando tem este som.

 

Vejamos como ficarão por exemplo os 3 primeiros artigos da Constituição segundo a futura ortografia simplificada:

 

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Artigo 1.º
Repúblika Purtuguesa

Purtugal é uma Repúblika çuberana, baziada na dignidade da peçoa umana i na vontade pupular i empenhada na konstrução de uma çociedade livre, justa i çolidária.

Artigo 2.º
Estado de direito demucrátiko

A Repúblika Purtuguesa é um Estado de direito demukrátiko, baziado na çuberania pupular, nu pluralismo de echpreção i organização pulítika demukrátikas, nu respeito i na garantia de efetivação dus direitos i liberdades fundamentais i na çeparação i interdependência de puderes, vizando a realização da demukracia ecunômica, sucial i cultural i o aprufundamento da demukracia participativa.

Artigo 3.º
Çuberania i legalidade

1. A çuberania, una i indivisível, rezide nu povo, ke a exerce cegundo as formas previstas na Konstituição.

2. O Estado çuburdina-se à Konstituição i funda-se na legalidade demukrátika.

3. A validade das leis i dos demais atos do Estado, das regiões autónumas, du puder lucal i de kuaisker outras entidades públikas depende da çua confurmidade com a Konstituição.

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Portanto, exmos. criminosos simplório-progressistas, em vez de estragarem a língua dos outros transformando-a artificialmente por ignorância e decreto – adoptem uma melhor! Não se sintam obrigados a usar uma língua que consideram tão imperfeita como a Portuguesa – usem outra qualquer! Se vos sobra um milímetro de patriotismo, partam daqui para sempre unificados e simples – para o ilhéu das vossas asneiras!

O Sr. Macaca Pasteleiro

Quem é o sr. Malaca Casteleiro?

Certos homens não foram decerto destinados, de nascença, a participar na memória colectiva que atravessa as eras e que denominamos por História. Um dos mais graves erros da sociedade humana é teimar dar, por vezes, a esses o que a natureza não lhes emprestou sequer, e torná-los subitamente importantes ao ponto de serem tema de conversa ou poderem estragar de facto alguma coisa com a sua atroz inépcia e fraca virtude.

Poder-se ia talvez fazer um tratado sobre a civilização tomando esta observação como ponto de partida e perseguindo a teoria de que a “quantidade de civilização” é inversamente proporcional às oportunidades cedidas aos desprovidos de mérito.

Sim, talvez se pudesse, mas por muito excelente que resultasse esse tratado seria sempre demasiado abstracto para que atingisse o meu alvo como ele merece. Portanto vou falar cirurgicamente, e apenas, de uma instância deste mal: a conjugação desventurada de ausência de talento e excesso de oportunidade que é o sr. Malaca Casteleiro.

O sr. Malaca Casteleiro é sobretudo duas coisas. Primeiro é o responsável pelo “Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea” da Academia das Ciências de Lisboa, que introduz na língua portuguesa palavras como “scanner”, “stand”, “stafe” (do inglês “staff”), “stresse”, “cretcheu” (importado do crioulo caboverdiano), “plafom”, “eau-de-toilette” (assim mesmo), “brífingue”, “icebergue”, “bué”, “croissã” e outras palavras que o sr. Malaca, nas suas jornadas pelo mundo, terá ouvido nas ruas e confundido com o português.

Apresento de seguida alguns excertos seleccionados de um membro da Comissão Científica do Ciberdúvidas que melhor do que eu tece algumas justas e certeiras críticas a esta obra onde o talento do sr. Casteleiro já se esboçava:

 

«St não é reprovável por não estar consagrado na tradição ortográfica; é, repetimos, que não há (nem nunca houve) na língua portuguesa palavras assim começadas, o que é muito mais grave. Stafe enferma do mesmo mal que stresse. Para evitar semiaportuguesamentos deste tipo, reprováveis, como vimos, o único aportuguesamento razoável, em português europeu, seria setresse, setafe e quejandos.»

«Aportuguesamentos do género da terminação inglesa -ing como -ingue são relativamente aceitáveis, nos casos em que tais estrangeirismos (ou neologismos externos, no dizer da ACL) são adoptados, como no famigerado brífingue, quando não se puderem ou quiserem evitar. Já eau-de-toilette é inadmissível num dicionário português; quando muito devia usar-se, como dantes, água de cheiro (uma vez que toilette, assim escrito, nada é na língua portuguesa). E toilete (assim mesmo!) não é português, porque se manda ler oi com o seu valor de em francês, e grafado só com um t, quando nesta língua é com dois!»

«Meter no Dicionário o termo cretcheu é rematado disparate: por um lado por tratar-se de termo do crioulo caboverdiano, por outro por conter o grupo tch, actualmente apenas dialectal, escrevendo-se sempre ch, mesmo que se pronuncie assim esporadicamente. Motivos ambos, pois, para não se dever ter registado num dicionário que se pretende normalizador da língua portuguesa.»

«Icebergue é aportuguesamento que só permite a pronúncia com i-; se queriam dar ao vocábulo aquela com ai-, só havia duas hipóteses racionais: deixá-lo em inglês, ou aportuguesá-lo de facto (aicebergue). Mais uma vez se nota o perigo dos semiaportuguesamentos!

Outro exagero, de índole muito diferente, é o acolhimento (de braços abertos!) do recentíssimo bué, autêntico monstro dentro do português, muito pior, na verdade, que a adopção do termo quilé, usado vulgarmente em calão, já há bastante tempo. Alguém disse com justa graça, a este respeito, que houve discriminação!»

http://www.ciberduvidas.com/controversias.php?rid=886

 

*

Pois bem, o desprezo pelo património, a ignorância de uma identidade, a falta de rigor científico, o ódio pela estética, em suma, a bandalheira anti-patriótica que se esboçava neste dicionário que não teve uma segunda edição revista, foi apenas o esboço, o primeiro passo, o ensaio, a preparação para a grande catástrofe que se preparava para abater sobre a Língua Portuguesa – a maior desde 1911 -, a que se chamou “Acordo Ortográfico de 1990”.

Apesar de nem o autor insistir no seu polémico e mal recebido dicionário, o visionário Malaca, talvez por vingança, nunca desistiu de atacar a Língua Portuguesa e foi afastado da Academia em 2006 por elaborar “dicionários escolares” conformes a um acordo ortográfio que nem estava em vigor (aqui se vê a tentativa de o empurrar a todo o custo).

O mesmo homem, o homem da “toilete”, Malaca Casteleiro, viria contudo, empurrado pelos interesses económicos e políticos de espíritos tacanhos e com o caminho aberto pelo desinteresse letárgico da população, a conseguir a vingança completa tornando-se o rosto nacional de um acordo ratificado com todos os países lusófonos à excepção de Angola. O pequeno homem da “toilete” tornou-se o pequeno deus da “deceção”.

Pouco interessava a Casteleiro que o acordo se fizesse à revelia dos povos, apenas para satisfazer os futuros caprichos brasileiros na ONU e a sua actual demonstração de liderança absoluta do universo lusófono. Casteleiro chegou até a argumentar que se tiraram as consoantes mudas porque seria demasiado violento, para a sociedade brasileira, deixá-las lá. Isto é a opinião do homem ideal para firmar o acordo com o Brasil. Para os políticos brasileiros era alguém que tinha a mesma noção de “universalidade” e desprezo pela etimologia/identidade, precavendo apenas os choques na sociedade brasileira, aberto a qualquer cedência e qualquer imposição por decreto em Portugal; para os políticos portugueses era ainda mais perfeito: era alguém da mesma espécie com esparguete cozido a substituir a coluna vertebral, obra feita na área e sem reputação a defender.

E Malaca Casteleiro submeteu-se a tudo como foi mandado. Não lhe interessava o acordo, a universalidade da língua e até pouco lhe importavam os interesses dos seus camaradas políticos. Queria, porém, a vingança. A vingança sobre os críticos, a vingança sobre os que o afastaram da Academia e, sobretudo, a vingança sobre a natureza, que o tinha destinado a tão pouco. Casteleiro provou à natureza que merecia ficar na História. Conseguiu essa vitória: fica registado como um dos que mais contribuíram para destruir o património linguístico.

*

Com toda esta “visão linguística” decerto o referido visionário não se importará que actualizemos, simplifiquemos e modernizemos também a ortografia do seu nome, e com o mínimo de alterações – trocando apenas um ‘l’ por um ‘c’ e um ‘c’ por um ‘p’, com o resultado coerente e unificado de “Macaca Pasteleiro”.

“Macaca” aceitará “Maluco” como dupla grafia por compatibilidade com a norma culta de diferentes regiões lusófonas,  e “Pasteleiro” poderá também escrever-se “Trapaceiro”, termo que relativamente a este personagem está devidamente consagrado pelo uso.

Vejamos na prática se é exagerada a afirmação de que o acordo ortográfico não reflecte mudanças naturais na língua e em vez disso impinge, por decreto, brasileirismos grotescos, alheios à história do Português e a tudo quanto podemos assegurar como “consagrado pelo uso” (e pela etimologia) em Portugal.

Quem pode ler as seguintes frases pós-acordo, escritas não na Língua Portuguesa mas no recém-parido Linguajar Lusófono, sem sentir náuseas?

  • «A espetada do espetador estava ótima.»
  • «A adoção do batismo feita pelo ator foi uma deceção em todas as aceções.»
  • «A rececionista fez numa direta uma ata excecional na receção.»
  • «Os tetos cairam sobre os espetadores. Foi dececionante.»
  • «O ator foi à receção refletir sobre contraceção e saiu afetado.»
  • «O ano letivo de arquitetura começa exatamente na segunda.»
  • «No Egito um coletivo de atores projetou um ótimo espetáculo, sem distrações, na redação.»
  • «É atual ter afeto pela seleção.»
  • «Não levantes objeções e ativa o projeto.»
  • «Motor elétrico ou de injeção direta.»
  • «Exato, a rececionista selecionou e ativou uma ação para o colecionador.»
  • «Ele para para quê? Ele para para refletir.»
  • «O tempo não para para nada.»

 

(Qualquer semelhança com a Língua Portuguesa é pura coincidência)

11 Poias Ortográficas

É vagamente incómodo, e certamente irritante, andar num passeio salpicado por cocós de animais. Em vez dos olhos percorrerem o caminho atentos ao que os deleita, recolhendo em imagens a beleza das coisas como abelhas sugando o néctar das flores (para depois, quem sabe, produzirem o mel da arte), são obrigados a navegar rasteiros ao chão entupido de poias para que os pés, bem guiados, não tropecem em merda.

É certo que não é uma fatalidade, com cuidado e sorte chegamos limpos ao outro lado – mas é chato e perturbador. Pensamos: “que bom seria que os donos destes cães tivessem saído da civilização e não de um alfeire”, surge-nos como uma miragem a rua limpa e saboreamos, nesse imaginário pueril, quanto apreciaríamos passear sem matéria fecal entre nós e a beleza do mundo.

Igual sentimento tem o leitor que é obrigado a ler um texto escrito segundo o acordo ortográfico de 1990. Algumas palavras afiguram-se-lhe tão anómalas que tem de as evitar corrigindo-as na sua voz interior. Mas existem tantas, e tão grotescas, que desvia, para impedir os tropeções, toda a atenção destinada à beleza do texto.

Tal como o andante chega ao fim da rua, o leitor da aberração ortográfica chega ao fim do texto com igual irritação e pensamento: “que bom seria que os donos deste acordo tivessem no cérebro amor ao património em vez do buraco do cu”, e sonham com a facilidade impossível de recuperar a própria língua.

Pois aqui fique, para a posteridade, uma colecção de 11 poias ortográficas que já se começam a multiplicar e a chover, como se Zeus tivesse uma diarreia tropical, sobre o nosso já-muito-maltratado-desde-1911 património linguístico:

Poia 1: Adopção -> Adoção. Intuitivamente leremos “adução” e o cérebro tentará corrigir para a palavra mais próxima, “adoçam”. “Adoção” parece “adoçam” escrito por um adolescente descuidado, daqueles que produzem legendas para versões pirateadas dos filmes na Internet.

Poia 2: Acção -> Ação. Leremos “assão”, e o mais próximo será “assam”, um “assam” mal escrito pelo irmão mais novo do adolescente anterior.

Poia 3: Espectador -> Espetador. O que designava antes alguém que assiste a um espectáculo passa a designar alguém que espeta alguma coisa. Poderemos ler coisas como “neste jogo quem ganha é o espetador” ou “os espetadores habituais da Mariza”.

Poia 4: Sector -> Setor. Parece a abreviatura de “senhor doutor” que os alunos aplicam ao professor. O que era antes uma secção passa a ser o masculino de “setora”… Fácil será pisar esta poia antes que se chegue à longíqua conclusão do que realmente significa.

A etimologia de “sector”, do latim “sector”, foi preservada no francês (“secteur”), no espanhol (“sector”), no inglês (“sector”) e no alemão (“sektor”). Entre nós sempre se escreveu de acordo com a etimologia (nem a estuporada revisão de 1911 o alterou). No entanto o farol da língua, para os mestres do acordo, não está na arte destes velhos, bárbaros e atrasados países europeus – está na trunfa do Corcovado.

Poia 5: Activo -> Ativo. Ao deparar-se com isto o cérebro reparará que falta ali alguma coisa, que há um buraco algures na palavra, e irá procurar o que o pode preencher. “Ativo” tanto lembra “activo” como “altivo”, ou “aditivo”, ou ainda “aflitivo”. E chegará à conclusão de que é simplesmente corrosivo.

Poia 6: Excepção -> Exceção. Lê-se “excessão” e parece de imediato “excreção”. Excreção não está longe da verdade.

Poia 7: Acto -> Ato. O acto passa a confundir-se com a primeira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo “atar”: eu ato… Idem para “acta”, que muda para a terceira pessoa do singular do mesmo verbo. Percebe-se que os mestres do acordo levaram a sério o propósito de unificar quando se vê que a sua obra até unifica substantivos com formas verbais.

Poia 8: Há-de -> há de. Sem hífen o “de” vai passar a haver muitas vezes. “Há de” indica-nos que há qualquer coisa misteriosa que se designa por “de”.  Há estrelas no céu, há peixes no mar e agora, com o acordo, também há de.

Poia 9: Concepção -> conceção. Lê-se “concessão”. A Imaculada Concepção passa portanto a ler-se “Imaculada Concessão de Maria” e a significar algo que a Nossa Senhora autorizou (imaculadamente).

 

Poia 10: Recepção -> Receção

Leremos “recessão”, igual a “recessão” mal escrita… Será uma palavra maldita em qualquer empresa. Imagine-se que bem ficará em letras grandes na recepção do Ministério das Finanças.

Apesar da etimologia (latim receptio), decidiu tirar-se o ‘p’. Apesar desse ‘p’ ser lido no Brasil, decidiu não se dar grafia dupla à palavra. E apesar de não ter grafia dupla a Academia Brasileira de Letras decidiu não respeitar o acordo, continuando a escrever-se com ‘p’ no Brasil.

E assim se salvaguarda que qualquer decisão futura, como obrigar a escrever esta palavra em cirílico ou com as letras por ordem inversa, ou ambas, não causará qualquer estranheza no universo lusófono.

Poia 11: Egipto -> Egito

É das palavras “novas” a que mais se tropeça na RTP. O abrasileiramento de Egipto que acaba, como muitos outros, por entrar para o vocabulário ortográfico sem grafia dupla, é uma palavra feia como uma borra e em desacordo com a etimologia (latim aegyptus).

É interessante ver como o argumento do “consagrado pelo uso” (não-científico, pois em tudo se opta pela simplicidade) usado pelos autores do acordo para justificar excepções como a manutenção do hífen em “cor-de-rosa” (excepção no Brasil mas não em Portugal, bom aluno dos trópicos, exemplo da lusofonia, que obedece a tudo – mesmo ao que não é cumprido pelos que mandam), não se aplica no caso de consoantes mudas que sempre existiram na ortografia portuguesa.

Continua, porém, a escrever-se “egípcio” e “egiptologia”, palavras com a mesma raiz de “Egipto”. Se antigamente, em caso de dúvida, se podia raciocinar pela semelhança ou pela etimologia para assumir a forma certa de escrever, com o acordo em vigor (o tal que afirma simplificar) a fórmula de pensamento terá de ser esta:

– Adivinhar se a consoante se pronuncia numa “norma culta” que nem os especialistas conseguem definir;

– Adivinhar se, apesar disso, o acordo prevê alguma excepção para a palavra;

– Adivinhar se o vocabulário ortográfico em vigor decidiu cumprir o acordo e respectivas excepções ou se decidiu criar uma excepção marginal “consagrada pelo uso” (como nos casos de “cor-de-rosa”, “recepção” e “concepção” no Brasil).

Para os cumpridores do acordo a dúvida será, portanto, mais inteligentemente resolvida dando a um macaco algumas letras e pedindo que as atire ao chão e as baralhe com os pés – tudo menos desperdiçar tempo a raciocinar sobre ortografia moderna.

E desse ponto de vista o acordo de facto simplifica: ninguém que o queira cumprir vai gastar muito tempo a pensar antes de escrever. Claro que me vão responder: “mas vão faltar os macacos!”. Pois eu digo que não.